24 Abril 2020
“Conversavam sobre todas as coisas que tinham acontecido” (Lc 24,14).
A reflexão bíblica é elaborada por Adroaldo Palaoro, padre jesuíta, comentando o evangelho do 3º Domingo da Páscoa - Ciclo A, que corresponde ao texto de Lucas 24,13-35.
Nossa vida é parte da História, e esta, por sua vez, é formada pelas histórias de nossas vidas, pontilhadas e marcadas pela presença de outras muitas histórias.
A História, por si mesma, é provocante e nos fascina; ela tem um estranho poder de sedução. Nós nos reconhecemos nas histórias da História; isso nos facilita tomar consciência de onde estamos e quem somos, e nos ajuda a assumir decisões mais maduras frente aos desafios e surpresas que a vida nos reserva.
A vida só tem sentido quando se torna História, isto é, quando não se limita a repetir o passado, mas quando engendra algo novo e diferente a partir de uma História internalizada e saboreada.
É somente no nível mais profundo que o ser humano transforma seu “tempo” em história e seu “espaço” em encontro.
No relato dos “discípulos de Emaus”, o encontro com o Ressuscitado nos ajuda a “ler” a História, pessoal e coletiva, de uma maneira diferente e instigante. A história triste e fracassada dos dois discípulos adquire um novo sentido a partir da luz dos relatos bíblicos que o Peregrino traz à memória.
A partir da “memória bíblica”, eles são movidos a “re-ler” a própria história com novos olhos, reconstruindo-a, dando a ela um novo significado e deixando-se impelir a escrever uma nova história.
Marcados pelo dinamismo da Ressurreição, cremos profundamente na força evocativa e transformadora da história; encontrar-nos com ela significa caminharmos para o interior do mistério da mesma história; significa também deixar-nos questionar, iluminar e mobilizar por ela.
Com isso, reiniciamos um novo caminho de aventura, que consiste não só em receber e celebrar a história, mas atualizá-la, reescrevê-la, confirmá-la... Uma história com rosto de futuro... e um futuro inspirador.
A história se revela, assim, como um húmus vivente, uma atmosfera de graça, uma torrente subterrânea na qual se nutre todo o processo do seguimento de Jesus. Não é fora da História e de sua história que o(a) seguidor(a) de Jesus pode reconhecer a Vontade de Deus e escutar Seu apelo; porque “Deus se fez História” e só o Verbo Encarnado, agora Ressuscitado, pode ser “o verdadeiro fundamento da história” (S. Inácio). A partir do Jesus ressuscitado, a história de cada um e da humanidade inteira adquire uma nova luz e um novo sentido e se abre a um vasto horizonte de compromisso.
A história pessoal do cristão e a história do mundo tornam-se, portanto, o “lugar” habitual da experiência de Deus, a montanha da misteriosa sarça ardente que não se consome.
Fazer memória das histórias não significa querer mudá-las, mas adquirir nova perspectiva, um novo olhar. Com frequência, esta perspectiva nos ajuda a entender melhor nossa situação atual. Trata-se da “memória agradecida”: tudo tem sentido, nada é desperdiçado...
Quando a história é contada e re-contada, acontece a cura da memória. Em lugar de uma história opressiva e pesada, passamos a contar com uma “história redentora”. O momento da Graça é precisamente esse: quando, de repente, a perspectiva muda, encontramos um “novo sentido” e surge uma saída do emaranhado de lembranças, emoções e histórias de fracassos e decepções.
Isso aparece claramente no relato evangélico deste domingo.
Na narrativa, o Forasteiro ajuda os dois discípulos a “desatar” o nó de suas lembranças traumáticas e a compor uma nova história. A história de Jesus, com seu fim decepcionante, tornou-se pesada e eles procuram fugir de Jerusalém e da terrível lembrança da morte do Mestre. Mas a história os acompanha na estrada. Não param de repeti-la. Mesmo quando dizem as palavras certas, a intensidade emocional da experiência não lhes permite ouvir a história de uma perspectiva diferente.
Enquanto caminhavam, conversavam e discutiam com tal intensidade que nem perceberam a aproximação do forasteiro. Falar de maneira tão intensa de uma experiência recente demonstra que ela teve forte impacto na vida deles, mas o significado desta dura experiência está envolvido numa obscuridade.
Para eles, a história não faz sentido. A história de Jesus, com seu fim decepcionante, tornou-se agora traumática. Esforçam-se para encontrar a única coisa que vai ajudá-los a superar a dor, transformar a lembrança, permitir que continuem suas vidas, refugiando-se no passado.
Foi preciso discernimento por parte do Forasteiro para libertar seus discípulos daquela interpretação nociva da história. Ele reorienta a história sem diminuir a gravidade do que acontecera.
O Forasteiro não só reconta a história de Jesus, mas também tem de remodelar todas as histórias das relações de Deus com Israel. A “história pessoal” é “recontada” e considerada no contexto de uma história muito mais ampla; há uma ligação profunda entre todas as histórias, constituindo-se na grande História da Salvação. A descoberta desta nova perspectiva acontece como momento de graça que desce sobre eles.
A história re-contada começa a reconstruir a humanidade deles, a esperança vai retornando, os corações vão se aquecendo, a alegria vai surgindo em seus rostos... O Forasteiro, ao criar um círculo de confiança, abriu “espaço terapêutico” para que os discípulos contassem sua história em segurança e começassem a re-alimentar uma nova esperança. Foi criado um ambiente de hospitalidade que culminou na Ceia.
É nesse ambiente que a taça do sofrimento transformou-se na “taça da esperança”.
Das cinzas brotaram a esperança, o entusiasmo e os sonhos... e eles apressaram-se a voltar para Jerusalém a fim de partilhar a descoberta de um novo sentido da história.
A partir do fundamento da História (Jesus Cristo), contemplamos nossa própria história (pessoal e institucional): história que deve ser observada, lida, discernida. Tal experiência nos ajuda a abrir os olhos para a novidade inesgotável da vida, nos faz “aquecer o coração”, desperta em nós o desejo e mobiliza todas as nossas capacidades para um compromisso de ação transformadora na história pessoal e coletiva.
A História está sempre aberta, desafiando-nos, arrancando-nos de nosso imobilismo, despertando nossa criatividade para ser re-escrita de uma maneira diferente.
Nossa história pode ser poderosa motivadora de mudança; ela nos levanta quando estamos dispersos e sem direção; ela não é apenas relato do passado, mas parte viva do que somos agora; ela nos traz para “casa”, para nossa própria integridade e identidade.
Assim, a experiência pascal significa “conhecer”, “sentir” e “amar” a nossa própria história. É uma verdadeira experiência de Ressurreição.
Só assim a história se converte em “Epifania” (manifestação) de Deus e nos permite compreender, acolher e integrar tudo o que acontece, dentro e fora de nós.
Este é um tempo de Graça: o encontro vivo da “história” celebrada com o compromisso de construção da “nova história”, mais ousada e mais criativa. Trata-se de um momento tão fortalecedor e jubiloso que estremecemos reverentes diante do que celebramos.
Sem a luz da Ressurreição, nossa história, pessoal e coletiva, se reduz a eventos opacos, vazios, tristes...
Com a Ressurreição, a história se ilumina, se transfigura e nos desafia. A Ressurreição plenifica, dá sentido e costura os eventos, constituindo-se em “História de Salvação”. Ela nos faz ver o que todo mundo vê, mas de um “modo” diferente: vemos mais longe, vemos além, vemos mais fundo...
Diante da história pessoal e social, sinto-me desafiado? Paralisado(a)? com medo? Inquieto(a)?
Quanto de esperança carrego em meu interior?
O que me faz abrasar o coração diante de uma história que parece um fracasso?
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Emaus: recordar a história – sentir a história - Instituto Humanitas Unisinos - IHU